Duas coisas chamam a atenção imediatamente em Corpos secos. A primeira é que o livro tem quatro autores; a segunda é que a história se passa num Brasil devastado por uma epidemia fatal. Antes que alguém chame os escritores e os editores de oportunistas, é preciso esclarecer que o livro estava pronto antes da pandemia de Covid-19, e foi discutido se o lançamento deveria ser adiado. Aqui o perigo não é o coronavírus, mas uma doença sem cura que mata e transforma as pessoas em criaturas semelhantes a zumbis. Seus corpos secam, fungos e cogumelos brotam de suas peles e elas passam a se alimentar de carne humana.

Quatro personagens num país sem leis
Corpos secos tem quatro personagens principais: Mateus, que foi contaminado mas não manifestou os sintomas; Murilo, uma criança, irmão de Mateus; Regina, a esposa infeliz e entediada de um fazendeiro; e Constância, uma engenheira de alimentos que tem uma relação fria com a família. Eles estão espalhados por diferentes cidades do Brasil e, a partir de determinado momento, decidem ir para Florianópolis. As notícias são vagas, mas dizem que lá é um dos poucos lugares ainda seguros do país.
No Brasil pós-apocalíptico apresentado em Corpos secos, já não há governo, nem regras. Por isso, os personagens são expostos a perigos que vão além dos mortos-vivos, como grupos armados, pessoas loucas, estupradores e ladrões. A única lei que restou é a lei da sobrevivência, e isso faz com que o livro seja tenso do início ao fim.
“Não existe mais país, e é difícil se acostumar àquela sensação, de uma ausência intangível provocada pelo fim das regras mais básicas de civilidade. Alguns mortos vagam pelas ruas, a pele dura e ressequida se assemelha a uma casca de árvore tomada de fungos, e ao menos um deles dá o bote na direção do carro. Ele perde o fôlego em seguida, fica para trás, e Mateus o vê pelo retrovisor se deitar no chão, no meio da rua.”
Flip destruída
Mesmo tendo sido escrita “a oito mãos”, a obra é surpreendentemente coesa. Os capítulos de Murilo talvez sejam os mais impactantes, já que são narrados em primeira pessoa por uma criança forçada a amadurecer na marra, mas todos possuem passagens fortes e marcantes.
Apesar de toda a violência e tensão, Corpos secos também tem momentos divertidos, como a passagem por Paraty, destruída bem na época da Flip. A aparição de Dona Carmem, mãe de Constância, também rende cenas mais leves, com seus métodos caseiros de combater as criaturas.

Incredulidade inicial
O livro tem uma presença significativa de personagens LGBTQI+ e não deixa de fazer críticas ao agronegócio, já que a epidemia teve início com o uso descuidado de um novo agrotóxico. Existem também algumas cutucadas contra Bolsonaro.
Mesmo não sendo uma obra sobre o coronavírus, Corpos secos tem várias similaridades com o momento em que vivemos, como a incredulidade inicial com a gravidade da doença.
“Na escola diziam que mais de dez mil pessoas já tinham morrido. Depois alguém dizia que mil pessoas morrem de gripe todo ano no Brasil e ninguém fica surtando por isso. Por que ninguém fala disso na Argentina, hein?”
Terror e reflexão
Mesmo utilizando alguns elementos que são recorrentes em obras do gênero, Corpos secos ganha frescor por se passar no Brasil atual. O livro faz prender a respiração com suas cenas de terror e ação, mas também leva à reflexões sobre a esperança e a natureza humana. Os direitos para uma futura adaptação já foram vendidos para a RT Features, produtora responsável por filmes como Me chame pelo seu nome e O farol.
Só deixo avisado que o desfecho do livro não é conclusivo, e o romance termina com várias pontas soltas aguardando por uma continuação. Tomara que ela não demore a sair!

CORPOS SECOS
Autores: Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado
Editora: Alfaguara
Páginas: 192
Onde comprar: Amazon
*eBook recebido através da parceria com o Grupo Companhia das Letras.

Postado por Lucas Furlan
É formado em Comunicação Social e trabalha com criação de conteúdo para a internet. Toca guitarra e adora música e cinema, mas, antes de tudo, é um leitor apaixonado por livros.
Um comentário em “Resenha | Corpos secos, de Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado”