Resenha | A dama do cachorrinho, de Anton P. Tchekhov

A dama do cachorrinho (presente em A dama do cachorrinho e outros contos)
Autor: Anton P. Tchekhov
Tradução: Boris Schaiderman
Editora: 34
Páginas: 19 (conto) e 368 (livro)
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Um homem e uma mulher, ambos casados e insatisfeitos em suas famílias, se conhecem e iniciam uma relação extraconjugal. Era para ser apenas um caso, porém eles se apaixonam. Já foram contadas inúmeras histórias com esse mesmo enredo, mas poucas chegam perto da beleza alcançada por Tchekhov nas poucas páginas de A dama do cachorrinho. A narrativa é considerada por muitos como um dos melhores contos da literatura mundial.

Gurov e Ana

O conto tem início em Ialta, na península da Crimeia, onde o bancário Dmítri Dmítritch Gurov está passando algumas semanas. Embora seja casado e pai de três filhos, ele viajou sozinho. Um dia, uma novidade chama sua atenção: a chegada de uma jovem e bonita senhora, que sempre é vista solitária, acompanhada apenas de seu cão de estimação.

Gurov fora obrigado a se casar muito jovem e sente desprezo pela personalidade de sua esposa. Misógino, ele considera as mulheres uma “raça inferior”, o que não impede que ele tenha vários casos extraconjugais. Na misteriosa “dama do cachorrinho” (a quem ninguém parece conhecer), Gurov vê a oportunidade de mais uma conquista.

Durante um jantar, o bancário consegue se aproximar dela. A moça se chama Ana Sierguéievna; ela também tem um casamento frio – nem sabe direito a profissão do marido – e se sente sozinha e entediada.

Não demora pra que eles se envolvam e comecem a se encontrar às escondidas.

Spoilers à frente

Quem acompanha o Valeu, Gutenberg! sabe que eu não gosto de dar spoilers nas resenhas, mas, no caso de A dama do cachorrinho, eu vou precisar falar sobre o desfecho do conto. Então, se você não quer saber como ele termina, é melhor parar de ler por aqui.

Gurov e Ana encaram seu romance de maneiras diferentes. Ele vê a moça como apenas mais uma conquista passageira, enquanto ela teme ser descoberta e ficar desonrada. Por isso, eles se sentem confortáveis quando se separam: Gurov volta para Moscou e Ana retorna para a cidade de S..

Porém, com o passar do tempo, Gurov não consegue tirar a “dama do cachorrinho” da cabeça. Está apaixonado. Ele vai para S. e, se arriscando, consegue encontrar Ana. Ela também declara seu amor por ele.

Mas é perigoso demais que eles se encontrem na pequena cidade onde Ana mora. Por isso, ela começa a ir para Moscou frequentemente, usando a desculpa de um tratamento médico, para ficar com seu amante.

O tempo passa e conto termina durante mais um encontro entre eles. Gurov percebe que está envelhecendo e, depois de uma crise de choro de Ana, eles conversam tentando achar uma solução para o problema deles: o casal não quer mais se esconder, nem morar em cidades diferentes ou passar tanto tempo distante.

Mas Tchekhov coloca um ponto final na narrativa antes que eles encontrem a resposta que procuram.

Anton P. Tchekhov (1860-1904).

Vidas inteiras narradas em um único conto

Muitos leitores – desde que o conto foi publicado pela primeira vez, em 1900 – ficaram insatisfeitos com a conclusão de A dama do cachorrinho. Ana e Gurov vão abandonar suas famílias para ficarem juntos? Vão se separar? Vão ser descobertos? Tchekhov dá de ombros.

O autor russo costumava dizer que, ao finalizar um conto, cortava o início e o fim. Embora seja uma anedota (será?), várias de suas narrativas levam o leitor a pensar que ele realmente fazia isso. Não é uma comparação exata, mas é como se Tchekhov escrevesse sobre uma situação que ele presenciara em detalhes enquanto caminhava na rua, mas da qual ele não vira o desfecho.

No entanto, mesmo sem uma conclusão definitiva, Tchekhov era capaz de apresentar vidas inteiras em seus contos. Ele é um dos meus autores preferidos e é incrível como ele conseguia escrever, num estilo simples, com tanta profundidade.

Algumas citações

A dama do cachorrinho tem menos de 20 páginas, mas quanta coisa acontece nelas! Os personagens mudam, suas vidas se transformam… Seus sentimentos muitas vezes são expostos através de gestos sutis, como quando Gurov come um pedaço de melancia enquanto Ana se arrepende depois que eles dormem juntos pela primeira vez. Tchekhov não escreveu “Gurov estava entediado com o lamento interminável de Ana, e para mostrar sua indiferença, pegou a faca e cortou a melancia, etc”. Ele simplesmente

(…) cortou um pedaço e começou a comê-lo, sem se apressar. Decorreu meia hora em silêncio.

O autor russo também não julga seus personagens. É como se ele dissesse apenas: os fatos são esses e foi assim que aconteceu. Tchekhov não usa Gurov e Ana para condenar e nem defender o adultério, e nem diz se eles estão certos ou errados.

A dama do cachorrinho termina melancólico, afinal eles

(…) amavam-se como gente querida e próxima, como marido e mulher (…). Parecia-lhes que o próprio fado destinara-os um ao outro e era incompreensível por que ele estava casado e ela também.

Só resta a eles continuar buscando uma solução. Que não aparece no último parágrafo:

Tinham a impressão de que mais um pouco e encontrariam a solução e, então, começariam uma vida nova e bela; todavia, em seguida, tornava-se evidente para ambos que o fim ainda estava distante e que o mais difícil e complexo apenas se iniciava.

E é isso. Sobre esse encerramento, Vladimir Nabokov escreveu:

O conto não termina realmente, pois, enquanto as pessoas estão vivas, não há conclusão possível e definida para seus infortúnios, esperanças ou sonhos.

Depois disso, não há muito mais o que dizer, exceto: leia Tchekhov. Se não souber por onde começar, comece com essa coletânea fundamental, A dama do cachorrinho e outros contos.

AVALIAÇÃO

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Fotos: Lucas Furlan, exceto retrato Tchekhov (extraído da internet)

5 comentários em “Resenha | A dama do cachorrinho, de Anton P. Tchekhov

  1. Olá. Gostei muito da sua resenha! Já tive a oportunidade de ler esse conto e alguns outros de Tchékhov e acho incrível a forma como ele descreve os persongens e tece a trama…Anton Tchékhov mostra as facetas do ser humano e até onde o adultério pode levar a degradação do ser. Principalmente quando a Ana se questiona acerca do quanto essa relação ainda pode continuar. Abraços, Agnes 😄

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  2. Meu conto predileto do Tchekhov. Gosto do momento em que Gurov entende que tudo na vida dele que acontece longe de Ana é uma mentira. Que existe a vida real, com ela, e o teatro da vida, que é o resto. Muito boa, a sua descrição do ambiente do conto.

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